segunda-feira, 7 de abril de 2008

O primeiro livro de culinária do Brasil

O primeiro livro de culinária do Brasil

Cozinheiro Imperial é o nome do primeiro livro de culinária do Brasil que se tem notícia. Com sua primeira publicação em 1840, revela receitas exóticas além do gosto e o comportamento das elites do século XIX.
Recebeu sucessivas edições até o final daquele século, o que indica que foi um sucesso naquela época.
O autor preferiu não se identificar, se oculta atrás de três iniciais: R.C.M. e se intitula um “chefe de cozinha”, talvez para inspirar respeitabilidade à obra. A ausência de um estilo próprio e de instruções pessoais leva a supor que o autor do primeiro livro de culinária brasileiro não tenha sido um cozinheiro. Além disso, falta no livro indicações de produtos locais em suas receitas, como na doçaria onde não há referências aos frutos tropicais.
Recentemente reeditado, continua a atrair atenção dos leitores não apenas pela antiguidade e curiosidades que suas receitas apresentam, mas também pelo mistério que envolve seu autor. É uma compilação ampliada dos dois primeiros livros de receitas portugueses, datados, respectivamente, do final dos séculos XVII e XVIII.
Não se sabe se ou autor elaborou as receitas citadas ou se era um mero curioso e pesquisador de textos antigos, mas é verdade que teve cuidados especiais ao atualizar pesos e medidas, viabilizando a execução das receitas compiladas. Sua 2ª edição foi revisada e acrescentada de anexos e apêndices, sendo estes tão antigos quanto a maioria das receitas apresentadas. Exemplo disso é o anexo intitulado “Método para trinchar e servir bem à mesa”, aparentemente de pouca utilidade numa época em que as aves e as caças já vinham cortados da cozinha.
Em termos de títulos e modo de preparo as receitas são muito parecidas com as de dois livros portugueses como o de Domingos Rodrigues (1680): Arte de cozinha e o de Lucas Rigaud (1780): O cozinheiro moderno ou Nova arte de cozinha. Estes dois autores marcaram a culinária portuguesa com suas receitas e informações técnicas e como famosos cozinheiros da casa real.
A apresentação das receitas no Cozinheiro Imperial seguem uma ordem em que os pratos eram servidos na refeição, começando pelas sopas, depois carnes, aves, peixes e doces. Há também capítulos organizados por tipo de alimentos: pratos de ovos, de leite, de legumes, de massas e molhos, contendo receitas doces e salgadas. Os doces, indispensáveis no último serviço de mesa desde o século XVII, quando o açúcar teve sua entrada triunfal na cozinha, recebem um capítulo especial. Além disto os doces são contemplados nos capítulos por tipo de alimento como por exemplo no capítulo dedicado aos ovos onde encontra-se desde ovos cozidos e omeletes a fios de ovos e outros doces.
O leitor brasileiro do século XIX poderia surpreender-se com a quantidade de receitas contendo produtos pouco comuns no Brasil da época, tais como alcachofras, trufas, peixes desconhecidos, além de inúmeros doces feitos com amêndoas e frutas típicas do hemisfério norte. Quanto aos temperos mais freqüentes, a tradição portuguesa se faz presente até mesmo no termo utilizado para designá-los. Segundo o autor, “os adubos que costumeiramente se usam na cozinha são sal, pimenta do reino, cravo da índia, noz moscada, gengibre, canela, pimenta longa, semente de coentro, erva doce, cominho e semente de funcho”. A combinação de cebola com alho, salsa e cebolinha já reinava na culinária do Cozinheiro Imperial. A variedade de temperos sugere que a culinária do primeiro livro de receitas brasileiro pode ser considerada “moderna”, já que o excesso de especiarias como canela e cravo, não é observada.
O toucinho e a manteiga são as opções de gorduras para refogar, fritar, assar e cozinhar. Na doçaria, a manteiga clarificada, a gordura de vaca derretida e mesmo a de porco formam a liga feita com farinha de trigo e gemas de ovos. Quanto às técnicas culinárias , não aparecem muitas novidades. Estas são mais marcantes entre o final do século XVII e meados do XVIII, como foi observado pela comparação entre os livros de receitas dos dois períodos, nos quais se nota uma maior preocupação com o tempo de cozimento, o controle do fogo e os acabamentos, preservando-se os molhos das carnes e engrossando-os com farelo de pão. A presença da massa folhada é marcante no final do século XVIII e ocasional no século anterior. Também na confeitaria, predominam as técnicas já consagradas da pâtisserie francesa do século XVIII, que aos poucos foram ampliando aquelas da doçaria típica conventual portuguesa do século XVII, quando os doces eram cozidos em tachos e panelas e diretamente levados ao fogo para apurar a massa à base de ovos, gemas e amêndoas. O autor parece adepto de uma doçaria mais sofisticada onde a massa básica é feita com farinha de trigo, gordura e ovos, assada em forno e finalizada com açúcar e pá quente para caramelizar, embora não renegue os famosos doces de ovos portugueses e as compotas de frutas.
Reforçando as instruções dos livros anteriores, estão presentes na obra as preocupações com a higiene na cozinha, a boa qualidade dos produtos e a conservação dos alimentos. Apesar da proposta do Cozinheiro Imperial fosse relatar o que havia de mais abrangente em termos de culinária, os utensílios de sua cozinha não são tão sofisticados, talvez por não atualizar os instrumentos de trabalho que constavam nas receitas originais. Esse fato dificulta uma avaliação das mudanças ocorridas nas cozinhas e utensílios usados no preparo de alimentos entre o final do século XVIII e meados do XIX. Panelas, prensas, pilão, formas, caixas e caixinhas, além de peneiras, funis, alfinetes, facas e colheres, compõem o grosso do equipamento dos cozinheiros. Numa época em que o garfo já era de uso freqüente, verificar a consistência do cozimento com o auxílio de um grande alfinete pode parecer um tanto bizarro, até mesmo para um cozinheiro do século XIX.
O Cozinheiro Imperial mostra ainda uma seleção de cardápios para banquetes com sua seqüência de serviços, todos eles compostos de vários pratos salgados e doces. Há um cardápio especial para a quaresma e ainda um glossário de termos técnicos de cozinha. Uma questão sempre citada nos repertórios culinários antigos como a alimentação dos doentes, também se faz presente nas receitas de caldos para o tratamento de várias moléstias. As receitas internacionais não só dão um toque sofisticado ao livro, indicando trocas culinárias e intercâmbios culturais, como também mostram a sofisticação do cozinheiro e do anfitrião que, ao utilizar “peru assado a italiana”, “pombos turcos”, “rabos de carneiro a prussiana” entre outros.
Para os que apreciam a arte de cozinhar ou que se deliciam com um bom prato, há muito que entreter com o Cozinheiro Imperial. Esta é uma obra que também traz o que pensar. Os tratados antigos foram escritos não só para os cozinheiros, mas também para atender as necessidades de seus senhores, com a intenção de informar como deveriam ser as refeições para que os convidados as apreciassem. Saber receber denotava civilidade por parte do anfitrião. Ou seja, a culinária estava presente na idéia de cortesia. Comer sempre foi um ritual de convivência e havia normas e procedimentos a seguir nesses momentos de cordialidade.
O primeiro livro de culinária brasileiro não atesta uma “culinária brasileira”, nem indica as transformações ocorridas entre as práticas alimentares portuguesas e aquelas que se desenvolveram na América. Mas pode sugerir a falta de apreço das elites brasileiras pela culinária nacional e a necessidade de importação de modelos de comportamento referentes à mesa, ainda em meados do século XIX.
Provavelmente o número de leitores do primeiro livro de culinária brasileiro tenha se ampliado ao longo das sucessivas edições, dando-lhe significados diferentes, a despeito dos desejos de seu autor, o qual, tudo indica, divulgara aquilo que acreditava ser útil à elite brasileira que vivia na Corte ou à sua imagem.


Duas receitas do Cozinheiro Imperial

Massa real

“Leve ao fogo uma caçarola com 1 litro e meio de água temperada com sal, um pouquinho de açúcar, 60 g de manteiga. Deixe ferver por um instante e acrescente farinha de trigo, mexendo com uma colher, até ligar a massa e dar-lhe uma consistência firme; continue trabalhando com a colher, até a massa começar a despregar do fundo da caçarola. Polvilhe com um pouco de casca ralada de limão e junte 4 ovos, um a um. Esta massa deve ficar bem ligada e lisa, servindo para o preparo de sonhos, popelinas e outros pratos diferentes.”

Coelho agachado

“Abra o coelho pela barriga, limpe-o e retire as tripas. Descarte o fel do fígado, limpe-o bem e faça um picado com manteiga, farinha de rosca, 2 gemas, salsa, cebolinha, cogumelos, sal e pimenta do reino. Recheie o coelho com essa mistura e costure-o com agulha e linha. Prenda as patas traseiras sob a barriga e as dianteiras embaixo do focinho, como se o coelho estivesse agachado. Prenda-o nessa posição com palitos e espetinhos, amarre-o com barbante e leve-o para cozinhar numa panela com um pouco de caldo, vinho branco, uma salsa picada, louro, cebola espetada com um cravo, alguns dentes de alho, sal, pimenta do reino e fatias de toucinho. Depois de cozido, passe o molho numa peneira e retire a gordura. Junte um pouco de culi e deixe reduzir. Regue o coelho com esse molho, regando-o com suco de limão ou de laranja azeda.”
Fonte: Leila Mezan Algranti.